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Lembra
Lauro Cavalcanti - Texto da exposição Frestas Lurixs, Rio de Janeiro - 2019
Para o menino maranhense Ferreira Gullar, cada objeto continha, debaixo dele, o seu nome. Um pedaço de rocha teria, gravado na terra, o seu significante, “pedra”. Sob o tronco, estaria escrito o vocábulo “árvore” e, no fundo do curso d’água, “rio”. Adulto e carioca, o poeta, a propósito desse hábito da infância, compôs o poema-objeto no qual um pequeno cubo azul, uma vez levantado da base branca, revelava a palavra “lembra”.No “poema enterrado” — um site specific antes de eles terem tal nome — ao cabo da descida de um lance de escada, encontravam-se cubos que, embutidos num maior, retirados, revelavam a palavra “Rejuvenesça”. Uma impossibilidade...  

 

A mostra de Beth Jobim evoca os gestos poéticos de lembrar e rejuvenescer. E aproxima, noutro patamar, questões adormecidas entre arquitetura e arte.

 

Lembre que as pedras foram objetos primeiros de seus desenhos e quadros. E que, no percurso, as laterais pintadas das telas ressaltavam suas materialidades enquanto objetos. Mais adiante, a economia de cor, azul ultramar ou terra sangue,  aplicada com rolo sobre o branco, mais que delimitar figuras, possibilitava o espaço vazio. Noutro desdobramento, drippings e transparências adicionaram drama a suas composições.

 

A trajetória  de sua produção nos últimos dois anos envolveu experiências com mistura de cores no cimento (Museu do Açude, Casa Roberto Marinho, Paço Imperial, Raquel Arnaud). E o pigmento, antes contido na pele das duas dimensões, agora multiplicado em vários tons, penetrou na essência dos trabalhos. O caminho é circular, pois não custa lembrar que a origem do cimento são pedras que, pulverizadas e calcinadas, voltam a existir, plásticas e moldáveis, quando se adiciona água e, uma vez secas, retornam ao estado sólido. Beth explicita a homenagem ao “Cubo Cor”, de Aluísio Carvão, a ele acrescentando novas escalas, pesos e questões.

 

Ao adotar um material essencialmente arquitetônico, o desdobramento natural dos trabalhos da artista carioca foi o de estabelecer uma relação com o espaço e a materialidade construtiva. Mário Pedrosa observava que, no México modernista, a pintura mural tomou de assalto a arquitetura, enquanto, no Brasil, a revolução se deu na própria estrutura. Numa empena da Casa Roberto Marinho, aproveitando a mesma misturadeira do concreto do edifício em curso, fôrmas especiais moldaram as obras de Beth Jobim que, chumbadas na fachada, se tornaram elementos indissociáveis da reserva técnica projetada por Glauco Campello. Há muito essa integração não estava explicitada na agenda dos artistas brasileiros.

 

Nas peças em concreto de Beth Jobim, existe um impulso de fusão construtiva, assim como um desejo de ordenação espacial. A ambiguidade faz parte do jogo: ruínas, vestígios de arquitetura, lápides, sítios arqueológicos ou bases para projeto futuro?

 

Ao planejar uma exibição, a artista realiza um modelo do espaço para experimentar a disposição das peças. Nessa maquete dispõe o conjunto, a escala de cada um e o diálogo entre os trabalhos; dessa maneira, determina protagonismos, ligações e contrastes.

 

A exposição na Lurixs reúne vários materiais e técnicas. O pincel reaparece nas telas, assim como indícios dos gestos de pintar e, numa delas, não sem uma dose de humor, é simulada uma superfície mineral cinza.

 

Na mostra, o sentido táctil do espectador é visualmente ativado para averiguar se a cor é pele ou essência, se o toque é áspero ou liso, quente ou frio. Não se trata de convite à participação manipulativa, mas a um olhar mais demorado. Não se espera que o visitante “desperte” a obra, mas que a ela dedique mais tempo de ver. A visão remete ao tato e retorna ao visual.

 

Frestas provocam uma intrigante ligação entre questões de deslocamento, caras aos neoconcretistas, numa pintura monocromática, onde o Caput Mortuum poupa linhas da superfície preparada em branco. Noutro a fenda é “pós-fontaniana”. Nela a rebeldia do corte cede lugar a uma abertura voyeurística de uma tela subjacente na cor de vermelho. Autópsia da pintura, acesso para a paisagem de Eros?

 

Um elemento novo na linguagem de Beth Jobim é a linha costurando a tela e reestabelecendo um ordenamento razoável, ou melhor, realisticamente controlado. No conjunto, que mescla elementos de materiais e espessuras diversas, as peças cinza e a negra tornam ainda mais vibrantes as placas das cores da terra. E apontam uma trajetória que celebra a possibilidade de alegre rejuvenescimento no percurso próprio de sua consistente obra. A alegria ainda é, sempre, a prova dos nove...

 

Lauro Cavalcanti

Rio de Janeiro, setembro de 2019

Elizabeth Jobim

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