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Improvisos Reflexivos
Ronaldo Brito 
Texto da Exposição Elizabeth Jobim: Desenhos - Galeria Paulo Klabin, Rio de Janeiro - 1988 Publicado em: Experiência Crítica - Editora Cosac & Naify, São Paulo - 2005
 

A virtude inicial dos desenhos de Elizabeth Jobim está no modo honesto e singular com que se dispõem a enfrentar o dilema contemporâneo - com a obrigação de incorporar a tradição moderna, cada vez mais densa e opressiva, produzir uma linguagem presente, que mantenha em aberto o campo dos possíveis. Daí o esquema algo didático, algo irônico, de estudos casuais: frente ao modelo há tanto o esforço positivo de assimilação dos valores plásticos ilusionistas quanto o distanciamento e a desintegração dos nexos da tradição. A começar por sua escolha quase aleatória, o modelo se oferece aqui a uma operação dupla: dominar a plástica do contorno e do volume e empreender uma discussão sobre o que podem ainda expressar linha, plano e forma. Em sintonia com a experiência cotidiana mais e mais dispersa, avessa a critérios e noções de unidade, o artista pratica a inteligência da ambigüidade da forma. O mesmo traço que capta e reproduz o modelo também o relativiza e fragmenta. Não por acaso, de fato, duas partes horizontais compõem o todo vertical do desenho. A reconstrução da figura - a luta para torná-la viva e convincente - é inseparável de decisões e contra-decisões expressivas no próprio momento de realização. Simultânea, incessantemente, o trabalho articula e desarticula unidades. E leva o olhar a uma hesitação recorrente entre o movimento de construção e desconstrução do modelo. Se não chega a definir e instituir unidades, a arte apenas cede ao processo de indiferenciação generalizado; se permanece escravo delas, no entanto, perde a vertigem do atual e engendra uma ordem arcaica. O “diálogo” entre artista e modelo acaba assim por exprimir o impasse da relação sujeito-e-objeto, esta estranha dualidade segundo todos os indícios insustentável mas que não se consegue finalmente ultrapassar.

 

À nova obra de arte cabe, portanto, apresentar consistência estética. A essa altura, nenhuma idiossincrasia, nenhum escândalo iconoclasta, pode salvá-la da banalidade pura e simples. De um modo ou de outro, ela se apóia na espessura, na trama complexa e problemática da tradição moderna. Mas ao se isolar nesse contexto como momento de arte, o risco é neutralizar-se enquanto momento de vida. Por isto, a meu ver, tais desenhos oscilam entre a conquista de plena individualidade e a condição de partes móveis de uma série. Sintomaticamente também o termo série oscila aqui entre o sentido morfológico e a acepção conceitual. O raciocínio serial minimalista investia, como se sabe, numa outra modalidade de novo – o novo por repetição, irredutível aos parâmetros da identidade clássica. Seguindo a estrutura abstrata do real contemporâneo, a experiência de séries substituiria o contato fisico de coisas e objetos dados. Um mundo-em-processo demandaria uma arte na qual só o gesto mínimo, dotado de economia máxima, escaparia ao obsoleto modelo demiúrgico de criação. Já as tendências recentes ditas neo-expressionistas buscaram exibir, através de uma mecânica de pintura cerrada e aflita, só aparentemente gratuita e espontânea, o insuspeitado informalismo das séries. O novo continuum eletrônico solicita enfim um gesto paradoxal, relâmpago e reflexivo, como condição mesma de sobrevivência dentro dessa verdadeira selva quântica.

 

Os "estudos" de Elizabeth Jobim seriam assim compulsoriamente temáticos, reabilitando a disciplina da cópia de museu, e intempestivos, registros pessoais mais ou menos passageiros; repetições acadêmicas, pedagógicas, e repetições reflexivas quase sisteméticas. Tomados inocentemente por transes, logo afirmam sua dimensão pensada e distanciada; analisados como estratégias de desconstrução acusam prontamente o caráter de improviso, assumem a incerteza básica do presente. E a referência direta à História da Arte revela mesmo um toque de astúcia: uma vez explícita, permite o trânsito franco e desinibido. E isso vale também para as suas empatias imediatas. Claro, sempre sera possível reconhecer de Kooning, por exemplo. Ao nível abstrato da formação do traço, porém, as marcas decisivas talvez sejam as de Iberê Camargo e Tunga. A própria disparidade de influências, no caso, depõe a favor de um projeto, digamos, essencialmente tentativo. Ao virtuosismo de Iberê - cujo brilho estético sublima e redime o trágico que tão urgentemente anuncia - se mistura a inteligência dúbia de certos desenhos de Tunga nos quais uma quase escrita repetitiva, falsamente expressiva, arma em sentido literal cenas eróticas. A singularidade do Eu insiste, apesar de tudo, em comparecer ainda que para assinalar exatamente o "estilo" de sua desagregação. Contudo, a pressão da história, o desencanto progressivo com a institucionalização brutal e o conseqüente esvaziamento da revolução moderna, impõe o regime da desconfiança crônica - o traço que se pretendia soberano aprende a se interrogar, a observar seus padrões e obsessões, a cultivar uma dúvida sobre a sua pureza expressiva.

 

Presos entre pólos opostos, a força particular dos desenhos recentes de Elizabeth Jobim consiste justamente em fluir. E, no limite, quem sabe, propor a leitura do real enquanto estruturas fluidas. Semelhantes estruturas exigiriam por princípio uma apreensão plástica, capaz de acompanhá-las em meio a suas constantes alterações; pronta necessariamente a resistir e a incorporar tensões e traumas sucessivos; mas pronta enfim para seguir fluindo. 

 

Elizabeth Jobim

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