Sem título, 2011
Óleo sobre tela, 50 x 70 cm
Foto: Pat Kilgore
A Linha florescente
Texto da exposição A linha florescente, na Galeria Raquel Arnaud, São Paulo - 2023
Ao invés de uma linha, uma costura. Nessas pinturas recentes de Elizabeth Jobim, os planos estão interligados, unidos não mais por uma linha abstrata, mas por uma marca física, plenamente visível como elemento manifesto – interrupção e separação dos planos de cor. Aqui, a tela se organiza à maneira de um patchwork absolutamente bidimensional, uma construção de tecidos organizados e costurados fora do chassi, e como um transplante de bidimensional tornado pintura – a pele mesma pintura. Pele que atrai o tato, o contato físico da mão que advém do olhar. Essa tatibilidade, creio, já estava implícita desde os primeiros desenhos de pedras da artista – pedras organizadas pela mão, tocadas pelas mãos. Aí há um possível indício da recente incursão da artista pela escultura. Os blocos de cimento pigmentados realizavam materialmente esse desejo de solidez, de dotar as cores de fisicalidade; obter o corpo mesmo da cor. Será então um devaneio imaginativo pensar que esses tecidos são vestes de corpos? A pintura impregnada da maleabili-
dade tátil dos diversos tecidos é como um corpo que se manifesta na superfície do plano. Esta se torna ora mais opaca, ora mais brilhante. No desvio para a escultura, o trabalho encontra o espaço que anseia e o transforma. Em retrospecto, esta trajetória de algumas décadas permite verificar tal direção de uma sequência de movimentos. A dissolvência dos primeiros desenhos e o azul dominante, que perdurou durante longo tempo e estruturava a pintura, desaparecem. Imagino que
a cor é a materialidade que sustenta a construção da forma; sem ela, a pintura desaba. A costura ora se abre e emerge da tela, um indício do verso que se revela tal uma inesperada intromissão que interrompe a planaridade da superfície pictórica – uma germinação do espaço, poder-se-ia dizer. Como se a artista estivesse descosturando o zip ou abrindo o zip – a linha vertical tal como
a chamou Barnett Newman. A materialidade da linha se revela; será que ela quer sair da tela? Em alguns casos, especialmente quando essa linha surge na vertical, penso em Fontana e nos seus tagli – os cortes que fazia nas telas –, que aqui parecem ocorrer em reverso; a sugestão de um espaço interior é suturada e a linha floresce vertical ou horizontal. Entre nós, e mais presente, é o procedimento inovador da costura nas telas de Paulo Roberto Leal dos anos 1970, que encontramos aqui retomado e ampliado.
A elegante e curiosa combinação de cores e texturas renova a equação que vínhamos descrevendo entre a materialidade óptica da cor e a da tela. Tecidos os mais diversos estão lado a lado costurados com outros pintados – deve-se lembrar que a tela também é um tecido –, formando em cada pintura o seu próprio e único pattern. Algo muito diverso de toda uma série anterior de pinturas onde predominavam as estruturas em azul, a tela avançava no espaço real sugerindo, às vezes, até certa arquitetura – a oscilação entre plano e espaço. Nesse sentido, a costura, quando aflora, indica essa ânsia pelo espaço real, como se a linha imaginária entre dois planos tivesse que ser ressaltada e enfatizada, mais ainda, demonstrada na sua materialidade como uma coisa. Vê-se, estamos de volta ao mesmo impulso anterior, agora reativado por essa linha antes pouco corporificada. Agora a ortogonalidade geométrica é mais rígida do que antes para eventualmente contrastar com a aparição incidental da linha, sua intromissão fortuita, mas, sem dúvida, calculada. Renovada ou ampliada é a variedade cromática de tela a tela. Cada uma delas mostra o modo como a cor é a matéria estruturante e aqui, ainda mais, com as características próprias dos diversos tecidos – suas aparências, texturas e consistências. Ao final, percebemos que essas telas se insinuam entre as coisas comuns, o despercebido que está à nossa volta, apontando e acentuando aquilo que só a experiência da pintura ainda pode perceber, indicar e ampliar.
Paulo Venâncio Filho